quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

"Ninguém conseguiu a grandiosidade e a perfeição do carnaval carioca"

Se você está prestes a cair na farra da avenida, espere um pouco. Conversar com o médico Hiram Araújo pode fazer com que a folia na Sapucaí fique mais animada. Ou, ao menos, ajudar a entender as mudanças que fizeram o carnaval carioca ser o que é. Autor de sambas-enredo da Portela e do livro "Carnaval: seis milênios de história", Araújo é diretor cultural da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), onde montou o Centro de Memória do Carnaval.

No depoimento a seguir, ele descreve o início da festa no Rio de Janeiro e defende a participação dos banqueiros do jogo do bicho na administração das escolas de samba. Foi um casamento sacramentado em 1984, quando Castor de Andrade encabeçou a fundação da Liesa – na época, formada por 10 escolas patrocinadas pelos contraventores.

Araújo sublinha ainda as transformações ocorridas até chegar ao “superespetáculo” que arrecada cerca de R$ 40 milhões. Desse dinheiro, metade é repassada às escolas, parte é entregue à Secretaria Especial de Turismo (Riotur) e outra parte paga os gastos da festa. “O sambódromo salvou as escolas”, diz Hiram Araújo, para quem carnaval de São Paulo não chega aos pés dos desfiles cariocas. “O carioca tem uma coisa diferente, ninguém alcançou nossa grandiosidade”, avalia.

O samba continua lindo
"O carnaval é um espetáculo barroco, no Rio e no mundo inteiro. Não é um espetáculo barato. Mas ninguém conseguiu a grandiosidade e a perfeição do nosso. O samba ficou muito acelerado para caber essa grandiosidade no tempo do desfile. Ao se acelerar, o samba se pasteurizou. Daí surgiram algumas anomalias, como o chamado samba de escritório, a partir do qual se produz um samba igual. O samba chegou a vender 1 milhão de cópias na década de 80. Com o passar do tempo, o esgotamento, a pasteurização e a pirataria, o samba não vende mais. Mas não sou saudosista e me debato contra aqueles que dizem 'isso não é mais escola de samba' ou 'isso não é mais samba'."

Espetáculo pós-moderno
"A marca do nosso carnaval é o superespetáculo. Isso ninguém consegue igualar. O que estamos fazendo é evoluir com o pós-moderno. Ninguém melhor do que a escola de samba para fazer isso. Neste ano gosto mais da Vila e da Imperatriz, que estão diferentes. Ser diferente significa escapar um pouco do padrão. Não pode existir saudosismo e dizer que tudo é ruim. Se esquecem que o carnaval é o maior espetáculo do mundo."

Avenida de dinheiro
"O sambódromo foi a libertação das escolas de samba. O sambódromo e a criação da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, a Liesa. A construção da Passarela do Samba e a fundação da Liesa marcaram o início de uma nova era do carnaval carioca. Foi no sambódromo que começou a circular muito dinheiro. E aí surgiu a pergunta: quem tem direito a esse dinheiro? As escolas eram filiadas à Associação das Escolas de Samba. Eram 44. Castor de Andrade e o Capitão Guimarães pensaram: vamos sair dessa bagunça e formar a liga independente. As escolas não mercadológicas ficaram na associação. As 10 maiores desligaram-se e passaram a fazer parte dessa nova entidade. A partir daquele ano, a Liesa passou a controlar toda a parte artística do desfile. Coube à Riotur os demais procedimentos legais para a realização do espetáculo."

Carnaval privatizado
"A porteira foi aberta e hoje são quase 100 escolas de samba filiadas à Associação. Mas a maioria não é conscientizada do mercado. A única conscientizada é a Liesa, que pegou seu produto e começou a luta pela privatização. Essa luta permanece até hoje, embora em 1995 o prefeito Cesar Maia tenha privatizado o carnaval, ou seja, a Riotur entregou a responsabilidade da estrutura e da montagem do desfile para a Liga. Se não vender ingresso, a Liga não tem lucro. Se vender, tem."

Evoé, bicheiros
"Foi na década de 70 que surgiram os banqueiros do jogo do bicho como os mecenas das escolas. Nenhuma escola dependia mais do dinheiro público para se manter. Mais tarde, no debate sobre a privatização do carnaval, houve uma crítica muito pesada, de que não podia entregar o carnaval aos 'bicheiros', assim mesmo, entre aspas. Há muito preconceito aí. Isso tem quase 20 anos, e a luta continua. As relações com o prefeito Eduardo Paes estão boas, mas a ameaça persiste."

De 60 mil a 300 milhões
"O sambódromo é hoje limitado a 60 mil pessoas. O desfile atualmente é para a televisão, para quem a Liesa vende os direitos de transmissão. É onde as escolas podem ganhar mais dinheiro e atingir mais pessoas. São 300 milhões de espectadores."

A chave do sucesso
"O carnaval como conhecemos, como espetáculo, ganhou força ainda nos anos 60, quando as escolas de samba passaram a desfilar em arquibancadas comercializadas previamente na Avenida Rio Branco e depois na Avenida Presidente Vargas. Ali se definiram realmente as características de uma escola de samba. A venda de ingressos ao público deu início a um processo de comercialização irreversível. Com as arquibancadas, elas passam a crescer, pois entrou mais dinheiro. O olhar passou a ser de cima para baixo, pois o público não está mais no chão. Cresceram as artes plásticas sobre a arte do samba. As escolas evoluíram cada vez mais para o show."

Monta-e-desmonta
"Quem passou a ganhar dinheiro naquela época foi a indústria subsidiária do carnaval. Quem ganhava mesmo eram as empreiteiras, graças ao monta-e-desmonta dos palcos. Mas poucos tinham essa consciência. Isso vigorou até os anos 80, com o sambódromo. Foi quando se viu que o monta-e-desmonta não era mais possível. Em dois anos a Passarela do Samba foi paga. Até então quem levava tudo era o poder público e as empreiteiras."

Desfile milionário
"O carnaval é hoje muito caro. Para ser competitiva, uma escola gasta atualmente entre R$ 8 milhões e R$ 10 milhões em um desfile. As agremiações vendem fantasias e cobram entrada para os ensaios pré-carnavalescos. Arrecadam no mercado em torno de R$ 4 milhões, incluindo o patrocínio dos patronos. O restante é preciso conseguir por meio dos patrocínios."

(IG)

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